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Escritora diz que está “como passarinho na chuva” e se assume “serva da poesia”
DIVINÓPOLIS (MG) – Perto de completar 40 anos de vida na poesia, a escritora Adélia Prado dá graças a Deus por isso e pelo fato da vida pessoal não ter mudado em nada por conta da literatura hoje mundialmente reconhecida.
Adélia tem “duas dezenas de poemas” na gaveta. Somados a outros em processo de criação, devem se transformar no 17º livro da carreira até o fim do ano. Aos 76 anos, ela diz que está “como passarinho na chuva” e se assume “serva da poesia”.
“O artista é servo de sua arte. E se ele não for, coitadinho dele. Está no sal”, define.
Por conta de um engarrafamento na BR-381, a viagem entre Belo Horizonte e Divinópolis dura mais de três horas em vez das duas horas previstas. Uma carreta atravessada na pista atrasa por completo o encontro que vinha sendo combinado há alguns meses. Mas Adélia recebe com ar de zelo que alivia qualquer estresse.
A mesa está posta com café quentinho, bolo de fubá, pães e roscas fofinhos que ela mesma prepara e serve em fatias generosas. Típica dona de casa mineira, uma das mais importantes escritoras brasileiras puxa a visita que chega direto para a cozinha. De lá, não dá vontade de sair.
“Em casa de mineiro tem que comer. E se a visita não aceita, fica parecendo desfeita”.
Nacos de bolo e um pote de manteiga Karinho, amarelinha, iguaria tão divinopolitana quanto a dona da casa, acompanha o lanche. “Pouca gente lembra, mas outra manteiga boa que a gente tinha aqui era a Lírio. Vinha em uma latinha assim”.
Adélia, de chinelos de dedo, preocupa-se com o motorista lá fora. “Ele deve estar com fome também”. Mas ele já se foi. “Aceita um suco? Não”. Pequena desfeita. Inevitável depois de tanta fartura.
Na sala, a prosa continua. O relógio de parede ecoa a cada hora cheia e faz lembrar o som tradicional de uma casa de avó – função que Adélia exerce junto dos nove netos. Em uma das mesinhas, apenas uma estatueta de Carlos Drummond de Andrade, o padrinho literário. “É o Charles, como a gente o chamava”. O grande poeta lê os poemas dela pela primeira vez em 1972, por isso tem lugar de honra na casa. Três anos depois, Drummond cita os poemas de Adélia em uma crônica do Jornal do Brasil. Pronto.
Com o aval do poeta, Adélia chama a atenção da Editora Imago e publica, em 1976, o primeiro livro: “Bagagem”.
Dois anos depois, a generosidade de Carlos Drummond de Andrade abre alas para o reconhecimento no mercado editorial quando Adélia, já caminhando com as próprias pernas, lança “O Coração Disparado”, que lhe confere o Prêmio Jabuti – principal condecoração para autores brasileiros.
Quem faz a ponte entre Drummond e Adélia é o escritor Affonso Romano de Sant’Anna. A autora envia textos manuscritos em “papel de caderno” para Sant’Anna, que os mostra a Drummond.
“Apareceu uma poeta lá em Minas Gerais”, lembra Sant’Anna sobre a conversa com o poeta itabirano. Alguns textos de Adélia foram lidos pelo telefone. “Tinha uma linguagem feminina nova. Até então, havia Cecília Meireles, que era lírica e imponderável. Adélia tinha raiz, falava de cebolas, de marido, de igreja. Era de carne e osso. Além disso, ela tinha uma dicção própria”, analisa.
“Drummond foi muito generoso”, reconhece. Mas, certamente, apenas generosidade não garantiria a perpetuação da escritora no mercado editorial, que registra vendas volumosas ao longo de quase quatro décadas.
“Eu comecei a escrever mesmo depois da morte do meu pai, em 1972. Comecei a fazer alguns textos e dizia para mim: ‘isso aqui está muito diferente de tudo o que eu já fiz’. Descobri uma linguagem própria, uma dicção pessoal. Há quarenta anos estou escrevendo e acreditando no meu próprio texto”.
Sant’Ana diz que depois de tantos anos, a poesia de Adélia ainda faz sucesso por falar da emoção. “Não é uma poesia cerebral. Ela não está preocupada em ser vanguardista, concretista, mas com o sentimento”.
Na opinião do autor, a grande identificação de leitores de meios urbanos com a poesia frugal da mineira é motivada pela temática da pureza, da simplicidade. “Mas aí é que entra o lado mágico da poesia. Ela fala de uma coisa aparentemente banal, de repente, o verso dá um pulo e pega o leitor pelo pé”.
O primeiro livro de Adélia Prado, “Bagagem” conta com quase trinta edições atualmente. “O fato de ser aprovada como autora e de ser reconhecida como poeta, me deu mais felicidade para arear as panelas com mais gosto ainda. Eu fiquei feliz demais da conta”. Os outros 15 títulos da autora também já estão todos reeditados. Alguns traduzidos para o inglês, espanhol, inglês. “Mas não sei quanto já vendi”.
Os livros saem permanentemente”. Sobre o status de “poetiza viva mais lida no Brasil”, ela também não tem números concretos, apenas impressões – fortes, diga-se de passagem: “Eu acho que sou bastante lida, pois tenho muito retorno das pessoas”.
Mesmo com a fama, ela levanta suas mãos aos céus e alegra-se: “A minha vida continua a mesma. Graças a Deus um bilhão de vezes! Eternamente graças a Deus”. A gratidão ao Altíssimo tem justificativa das boas. “Nossa Senhora! Em 1976, eu ainda estava com os filhos pequenos, dois adolescentes. Eu tinha muita tarefa para fazer em casa, muita coisa para cuidar. Minha família, todo mundo compartilhou disso. No dia do lançamento, tinha menino, velho, irmã grávida, a vizinhança toda estava lá batendo palma para mim”, conta orgulhosa, de pernas cruzadas sobre o sofá. Afinal, Adélia estava lançando um livro que Carlos Drummond de que Andrade tinha gostado. “Foi inesquecível. É inesquecível”.
“Nossa, que gravador mínimo”, aponta para o aparelhinho, em um momento da entrevista. “É do Steve Jobs?” (fundador da Apple, que morreu no ano passado). O gravadorzinho digital é de outro fabricante, mas a citação da autora serve de pretexto para uma curiosidade. “Eu escrevo à mão, com lápis. Eu não entendo nada (de tecnologia), mas admiro profundamente. Li a biografia dele. Fiquei fascinada quando morreu. Teve aquela projeção da vida dele. Então eu falei: gente do céu, que pessoa!”.
Os textos de todos os livros de Adélia, sejam poesia ou prosa, foram todos feitos à mão. “Depois o Zé (José de Freitas, o marido, com quem é casada há mais de 50 anos), ou alguns dos meninos passa para o computador”. A poeta diz que chegou a usar computador apenas para “tirar receitas” ou olhar e-mails. “Digito mal. Ultimamente me deu vontade de voltar. É que meu neto de sete anos já está fazendo isso e me dá vergonha”, sorri.
Fato: Adélia gosta de cozinhar. E o faz bem. Poesia, então, nem se fala. Seu penúltimo livro, “Duração do Dia”, publicado em 2010, foi indicado para o Jabuti, na categoria que a consagrou. É nele que ela usa uma expressão para definir dois de seus dons: “A Escrivã na Cozinha”, título de um dos poemas.
“É o meu cotidiano. No meu caso, escritora e poeta, como eu vou escrever se eu ignoro a minha própria cozinha? Meu próprio banheiro, minha sala, minha vassoura? Nós só temos o cotidiano, seja escritora ou não, e isso é igual para todo mundo. Um princesa de verdade, se ela não conhece isso, ela fica falsa na ‘princesice’ dela”, compara.
Para a escritora, que lançou seu primeiro livro quando tinha em casa cinco filhos pequenos para criar, a coisa mais verdadeira que existe “é o ser humano”. “É acolher aquilo que tem a ver com a minha humanidade e aceitar isso. Seja nas coisas mais comezinhas da vida, nas necessidades do meu corpo e da minha alma. Eu não saio da minha humanidade para escrever. Então, a escrivã que não está na cozinha está perdida. Quando eu falo cozinha é todo este contexto da minha vida”.
Pode parecer monótona para alguns, menos nobre para outros, mas a questão é que a cozinha e mesmo a casa de Adélia Prado, em Divinópolis, geram assunto e inspiração para mais de metro. “Porque a vida é inesgotável. Hoje eu deixo queimar o bolo, amanhã não queima. O tomate hoje está bom, amanhã não está. É tudo muito variável na sua identidade. É igual mas é diferente. É muito rico. De tédio, ninguém precisa de morrer. Só se for muito bobo. Bobão mesmo. A vida é rica demais da conta”.
“Sonhei com um forno desperdiçando calor,/ eu querendo aproveitá-lo para torrar amendoim/ e um pau roliço em brasa./ Explodiria se me obrigassem a caminhar por ele./ Ninguém me tortura, pois desmaio antes”, narra, em “A Escrivã na Cozinha”. Do aparentemente “banal”, como frisa Affonso Romano de Sant’Anna, os poemas de Adélia saem e arrebatam leitores.
“A questão não é o meu poema, é a poesia”, adverte. E neste mesmo impulso é que Drummond falou das dores dele. “Mas ele falou através da arte, da poesia. Aquela pinimba dele com o pai, o não sei o quê com a mãe. Quando eu leio Guimarães Rosa ou Clarice Lispector eu digo: ‘Ah, danada, você sabe o que está falando, eu te entendo. Não tô doida não, fulano também sente isso’”.
Para Adélia, os leitores dizem: “Nossa, parece que você estava escrevendo para mim”. “E eu digo que é evidente, pois se estou fazendo poesia, conto ou romance, eu me visto disso, daí eu posso falar de tudo, pois eu estou protegida”. A autora afirma que foi beneficiada por autores “maravilhosos”. “Eles oferecem as humanidades deles que é igual é a minha. É ato de amor. Portanto, eu peco senão praticar o meu dom”.
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