A novidade com cara de velha é a aprovação da lei antibaixaria – da deputada Luiza Maia, do PT – que consiste em proibir o poder público de contratar artistas cujas músicas “desvalorizem, incentivem a violência ou exponham as mulheres à situação de constrangimento”. A lei ainda contém emendas que estendem a proibição às músicas que "que fazem apologia a drogas ilícitas e incentivam a homofobia”.
E foi sancionada pelo especialista em greves, o governador Jaques Wagner.
Já vi esse filme antes, com o roteiro um pouco diferenciado, pois agora “eles” se travestem de libertários, mas são os preconceituosos de sempre. E sempre foi assim com a música popular que não possui o verniz do bom-gostismo.
Aconteceu também com o maxixe, o rock & roll, o iê iê iê e a axé-music. Como agora não existe mais a censura federal, a TFB – tradicional família baiana – se une aos stalinistas do politicamente correto na cruzada contra o pagode.
Além do mais, o que eles consideram baixaria – quem vai definir o que é ou não a tal da baixaria? – sempre foi um combustível e tanto da nossa canção. A baixaria nos identifica e, além de levantar a saia das mulheres e endoidecer a cabeça dos homens, é um fato estético.
Se é pra falar de machismo, os pagodeiros baianos estão na companhia de Noel Rosa, Ismael Silva e dos Rolling Stones. Quase todo o repertório da dupla formada por Mário Reis & Chico Alves, da autoria da turma do Estácio, entraria nesse índex. No primeiro disco gravado no Brasil, de 1902, Isto é bom, de Xisto Bahia, com a interpretação de Baiano, cantor nascido em Santo Amaro da Purificação, já estavam a malícia e a molecagem: “ouça o Bento, buraco véio tem cobra dentro”.
Sem a chacota, a música popular seria apenas séria. Do lodo vêm as pérolas, como diz o samba de Ederaldo Gentil, falecido semana passada.
Da sopa primordial, lamacenta, veio a vida. E o que é vivo sempre incomoda aos zumbis da caretice que preferem os artistas em camisas de força, ou resguardados – senão sufocados – pela coberta da respeitabilidade estéril. Como disse o professor Milton Moura, eles não conseguem aceitar o “triunfo do negão”.
Senão, leiamos a declaração de Luiza Maia à Folha de São Paulo: “É uma coisa que dá nojo. Esse tipo de música estava só crescendo, a gente precisava desse freio". De que lado está o preconceito? Quem precisa de freio?
Definitivamente, Raul Seixas era também da molecagem.
Fui assistir ao documentário sobre Raul – O início, o fim e o meio, de Walter Carvalho – e é de emocionar. Raul é grande, rico e a abusadamente baiano. Em todas as falas do próprio, aparece o sujeito debochado, curtidor, engraçado, carismático, e surpreendentemente doce, quase feminino. Mas o documentário podia ter avançado mais no assunto da música, que é o que fez Raul se tornar um mito e figura emblemática do rock e da canção popular.
Além de ter mencionado o mix entre rock e baião (Gonzagão e Elvis), faltou dizer que, ao lançar o seu primeiro disco individual – Krig –há, Bandolo! – Raul já era um artista amadurecido. A sua veia de produtor é mencionada apenas em oposição à de cantor. Pelo que o próprio Raul falou, numa entrevista ao Pasquim, em 1973, foi na CBS, atual Sony, que ele aprendeu a comunicar. Antes a música e a literatura eram coisas separadas para Raul Seixas.
Produzindo, entre outros, Jerry Adriani e Wanderléa, Raul sacou que podia unir as duas coisas e fazer canções populares diferenciadas, cujo exemplo máximo é Ouro de tolo, que, no filme, tem o caráter paródico mencionado por Caetano. Paródia profunda e insólita das canções de amor do Roberto, dizendo coisas inesperadas e existencialmente fortes naquele formato simples, “sem ser superficial”, como menciona Paulo Coelho, parceiro de Raul, citando o próprio.
Ao contrário do que diz o depoimento de Pedro Bial, que opõe Raul aos tropicalistas e seus programas estéticos, houve, sim, cálculo na atitude de Raul, o que só conta pontos a seu favor. A intersecção entre o iê iê iê e o chamado brega foi motor de muitas canções: Tu és o MDC da minha vida, da parceria com Paulo Coelho; Medo da chuva, também dos dois; e a declaradamente afetiva
Eu quero mesmo, dele e Cláudio Roberto, que assume todos os clichês:
Eu quero mesmo é cantar iê iê iê
Eu quero mesmo é gostar de você
Eu quero mesmo é falar de amor
Eu quero mesmo é sentir seu calor
Interessante seria falar da relação entre Raul e os tropicalistas que, no fundo – ainda segundo Raul no Pasquim – estavam “querendo chegar à mesma coisa, era só problema de linguagem”. Raul também admitiu gostar muito de João Gilberto, e ter sofrido a influência de Caetano e Gil. Além da música, o que fez a diferença do maluco beleza foi a variedade do público que conquistou – caretas, loucos, velhos, jovens, crianças –, questionando a verdade absoluta e cantando as individuais, o amor livre, o livre pensar, discos voadores, o início, o fim e o meio.
Comove ver Raul cantando/dublando Maluco beleza em um programa de TV, a imagem esmaecida, mas forte, do personagem que ele inventou pra si, revólver na mão, remetendo ao Caetano que, em 1968, se apresentou no programa Divino Maravilhoso cantando Boas festas, de Assis Valente, também empunhando uma arma de fogo. Curioso que o único encontro em estúdio de Raul com um dos tropicalistas, tenha se dado na gravação de Que luz é essa?, com Gil ao violão no LP O dia em que a terra parou.
São todos membros, como diria o augusto poeta, da Revolucionária Família Baiana.
Se houvesse hoje um show na Bahia, homenageando seu filho ilustre, será que a lei antibaixaria iria vetar o Rock das aranha?
Pra finalizar: que habitante de Salvador não conhece É d’Oxum, música de Gerônimo e Vevé Calazans? A canção é uma espécie de hino afetivo da cidade, e o que se deve a estes compositores, só por essa canção, é incalculável. É chegada a hora de saldar a dívida, em caráter de urgência, pois Vevé que se encontra gravemente doente, e precisa de ajuda. A oficialidade não se pronunciou, mas ainda há tempo para tal.
E, por enquanto é só, terráqueos!
Autor: Paquito
Fonte: http://terramagazine.terra.com.br/Jequietcong/blog/2012/04/12/toca-raul-a-favor-da-baixaria/
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