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terça-feira, 17 de abril de 2012

HOMENAGENS À ABELHA RAINHA

“Gosto que as coisas atinjam o que idealizei” por Ronaldo Jacobina


Foto: Alexandre Brum

Fui encontrar Maria Bethânia, 65, na sede da gravadora Biscoito Fino, numa belíssima casa na bucólica Rua Sarapuí, no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro. Era meio-dia. Dali a dois dias, a artista, que está completando 47 anos de carreira, lançaria, ali mesmo, numa entrevista coletiva com jornalistas de todo o Brasil, o 50º álbum, batizado de Oásis de Bethânia. “Estou preparando meu colete à prova de balas”, gargalha, como, aliás, fará várias vezes durante toda a nossa entrevista, que se estendeu até o meio da tarde, sem que aparentasse qualquer sinal de cansaço. “Não se preocupe, menino, sou muito conversadeira”, diz. Aos poucos, fui me livrando do nervosismo de fã que sou, desde menino.


Diante de mim, não está a grande estrela, mas uma menina que parece ter vivido sempre na sua amada Santo Amaro. Tirar seu bom humor, só quando as coisas que rodeiam seu trabalho não saem como ela quer. Aí é voluntariosa. Cuidadosa com as palavras, seu principal instrumento de trabalho e pelo qual tem verdadeira devoção, Bethânia fala da relação com a família; da juventude, época em que diz ter “pintado” muito; do amor pelo ofício; das modernidades dos tempos atuais e da falta de delicadeza do mundo. De uma leveza que a faz parecer flutuar na cadeira à minha frente, tal como quando está no palco, Bethânia ri das lembranças e diz que o sertão é o seu oásis. De bem com a vida, vai tocando em frente, espalhando poesia e encantando multidões. Definitivamente, Maria Bethânia é uma diva!

Você é muito criteriosa com seu trabalho. Com Oásis de Bethânia, lançado recentemente, você chegou à marca de 50 discos gravados. Você sofre muito com o processo de produção de um novo álbum?
Não sofro, não. É o momento que mais gosto. É quando eu sou a pessoa mais feliz. Quando estou criando alguma coisa, imaginando, querendo, pretendendo, essa hora é boa para mim, é quando eu gosto. Porque quando eu não tenho, assim, nada para me ocupar, por exemplo, quando termino um disco ou uma turnê, fico inventando alguma coisa. Trabalho acordada, dormindo, cozinhando, namorando, lendo (ri).

Tem aquela rigidez, tipo ficar escrava do projeto?
Não, porque é prazer para mim. Isso eu lhe digo, é prazer para mim.

Mas você é perfeccionista?
Sou. Insuportável. Eu gosto das coisas assim. Não é que eu seja perfeccionista, porque não gosto dessa coisa de chegar à perfeição, isso eu detesto, mas eu gosto que as coisas atinjam o que eu idealizei. Enquanto não consigo, não sossego.

Isso com sua vida pessoal também?
Não, não. Isso com o trabalho, porque o trabalho é a minha vida, eu sou assim. O que eu faço, sei aonde quero chegar na sonoridade, na interpretação, na maneira de articular a palavra, no que eu quero de peso, de suavidade. Tudo isso. Aí eu fico exigente. Enquanto não chega a isso, para mim, não está pronto.

O povo de Santo Amaro, assim como sua família, tem fama de festeiro. Você, durante anos, badalou muito. Depois ficou mais recolhida. Como é que você se relaciona com a festa hoje em dia?
Assim, eu sou santo-amarense, sou festeira, sou filha de minha mãe. A gente costuma brincar lá em casa que somos Viana Telles Velloso, Viana de minha mãe, Telles Velloso de meu pai. O lado Telles Velloso não é muito de festa; já o Viana, não adianta, porque tudo acaba em festa. Eu sempre falo que sou Viana. Em tudo eu sou Viana, é inacreditável. Eu sou muito o lado de minha mãe, de minha avó. Assim, aquela coisa bem caseira. Eu fiz uma casinha para mim em Cabuçu agora, copiei a casa de minha avó que eu tinha na memória. Simples. Para mim, tinha tudo de necessário, de bonito, de elegante. Lá na Bahia, eu frequentava muito todos os ambientes de arte. Eu participava do clube do cinema, junto com Caetano, ia para o Mercado Modelo. Eu conhecia a Bahia toda, andava a Bahia inteira, aquele Vale do Canela, a Reitoria, a Escola de Teatro, a Escola de Dança, pronto, aquilo era minha morada. Nossa morada. Gostava muito desse convívio com o mundo artístico. Quando vim para o Rio, aos 17 anos, fiz 18 aqui, fiquei maior, podia definir melhor minhas escolhas. Aí, meu amor, caí na gandaia. Aí no Rio de Janeiro não tinha lugar que sobrasse que eu não fosse. Cantava muito na noite, fiz todas as casas, boates do Rio e São Paulo. Então eu vivia muito tudo aquilo, os restaurantes… Eu nunca fui de festa, mas saía com os amigos para conversar, dar risada. Agora eu p-i-n-t-e-i, com 18, 20 anos. Aos 25, eu sapateei. Mesmo nessa época, eu já tinha fama de caseira. Tenho muitos amigos, nunca fui de frequentar a casa de ninguém, eles vêm à minha. Eu sou interiorana.

Você continua uma menina de Santo Amaro?
Continuo não, eu sou. Cada vez, tô pior. Morro de saudades, enlouqueço. Quando tenho uma folga, vou correndo para Santo Amaro. Morro de rir com o povo. Adoro ouvir as histórias, amo, é a coisa que mais me relaxa, que mais me faz bem. As brincadeiras lá de casa… No aniversário de Clara, que nasceu num domingo de Carnaval, ao meio-dia, ela disse que nos 80 anos queria fazer um grito de carnaval como daquela época. Então Caetano e eu fizemos para ela, e foi inesquecível aquele momento, 40 convidados. Para mim, aquilo é lindo, fico apreciando, não brinco muito, não, mas fico ali contemplando aquela alegria, e isso me faz um bem danado. Tão bonito!

E Salvador, você também tem uma casa lá. Como é sua relação?
Eu tenho uma casa lá e tenho uma grande relação com Salvador. Tenho uma grande adoração pelo mar. Eu tive uma outra casa, no Morro do Gato, que era um lugar muito grã-fino, que tinha uma vista para aquele mar lindo, mas eu não tinha muita intimidade com aquela Salvador ali. Pelo contrário, achava sem clima baiano, achava uma natureza… não sei, não sentia a Bahia. Quando fui para essa casa atual, o Solar Amarelo (Contorno), ali eu sinto estar em Salvador. Primeiro, aquela baía, não é mar aberto, é a Baía de Todos-os-santos, Ponta de Nossa Senhora, Ponta de Areia, Itaparica, Mar Grande, toda a encosta do Bonfim, Ponta de Humaitá, tudo aquilo ali que, para mim, é a Bahia. Quando era estudante na Bahia, em Salvador (nós de Santo Amaro chamamos Bahia, em vez de Salvador), era ali que eu vivia. Conceição da Praia, o Mercado Modelo ainda era cá, mas você vê, foi uma feliz coincidência, eu adoro, eu olho a cidade dali, da minha janela, gosto muito…

Você acompanha a cidade?
Acompanho até um pedaço, já acompanhei mais. Também chorei muito. Pergunto, me informo, conheço pessoas que têm decisões na prefeitura, no governo, mas são coisas que já estão definidas, que você, no meu caso, não tem muito o que fazer. O que posso fazer é cantar. A minha casa hoje, o Solar Amarelo, é uma ilha, está tudo vendido ao redor. Está tudo muito perdido, sem controle…

Eu não ando só por Aninha Franco

Maria Bethânia é fio condutor da música baiana do século 20, e a primeira intérprete pop da Bahia, nascida no Recôncavo, terroir de artistas apurados. Dorival Caymmi (1914-2008) já era famoso em 1965, quando ela substituiu Nara Leão no show Opinião, no Rio de Janeiro, e encantou o Brasil, mas sua intérprete era a portuguesa baianizada Carmen Miranda, voz, também, do baiano carioca Assis Valente. Xisto Bahia (1841-1894), nascido em Salvador, arrebatou o Brasil, como Bethânia, mas num tempo em que o País integrava o planeta quase que como no século 16, quando foi invadido.
Bethânia foi, assim, a pioneira em conquistas na era difícil da reprodutibilidade da obra de arte. Foi a primeira a fazer sucesso absoluto com Carcará, e a primeira a ter a sabedoria, instintiva, irritada pela multiplicação incessante dele, de dizer não canto mais e ir cuidar da carreira.

Foi a primeira a perceber que sucesso não se faz sozinha, e a levar consigo alguns dos melhores, Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Tom Zé, Roberto Santana. A primeira a gravar, com eles, suas poesias musicadas, e a do pernambucano Edu Lobo e a do carioca Chico Buarque. E foi quem disse a Caetano “Você precisa ouvir o Roberto, baby”, conselho arriscado nos anos 1960.
Por essas e outras, Maria Bethânia Vianna Telles Velloso foi a primeira intérprete brasileira a vender um milhão de vinis e um milhão de CDs sem fazer concessões à quantidade em detrimento da qualidade. Regida pela poesia, popularizou Fernando Pessoa no Brasil, requintou a obra sertaneja de Almir Sater, e extraiu, em cada interpretação, a grama de ouro que um bom poema deve possuir. Ouvir Na primeira manhã com Bethânia equivale a ler, pela primeira vez, A arte de perder, de Elisabeth Bishop.



Não por acaso, foi a primeira MPB classuda pescada pela pirataria. E a chegada de seus CDs nos piratas era o sinal de que a correnteza arrastaria tudo. Em Oásis de Bethânia (Biscoito Fino, 2012), quando ela canta “não mexe comigo que eu não ando só”, está apenas desfiando um sumário do que aqui está escrito e das outras infinitas conquistas que aqui não couberam.

Fonte: http://revistamuito.atarde.uol.com.br/

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