Aquela dita “satisfação” pode ter sido direcionada, por parte da maioria, para orgasmos sexuais, felicidades inter-familiares, descansos das rotinas laboriosas, paqueras efêmeras, viagens a locais desconhecidos, foliar em blocos e trios elétricos, vibrar pela escola de samba do coração, caracterizando o teor enviesado do carnaval contemporâneo para a “irreflexão” do simbolismo real das festividades, embora “irreflexão” esteja, a princípio, desligada do carnaval.
O liame deste passageiro período de ausência de obrigações com as homenagens a Dionísio, divindade grega do vinho e do desregramento, é estreito pela similaridade de razões existentes em ambos, ainda mais ao comprovar os cultos dionisíacos.
Exaltado por camponeses, pobres e pelas mulheres, Dionísio funcionava como “válvula de escape” para essas esferas sociais excluídas no decorrer do cotidiano grego, as quais descontavam aquele “tempo perdido” – se é que se pode chamar assim – se embriagando descontroladamente a fim de galgarem o “ekstasis” (êxtase) e o “enthousiasmos” (entusiasmo), que correspondiam a “sair de si mesmo” e a “ter um deus dentro de si”, respectivamente, conduzindo os adoradores a uma espécie de divinização particular próxima do deus do vinho, ao mesmo tempo que se desagrilhoavam das repressões.
Se na rotina da civilização grega a razão preponderava como ferramenta na manutenção da ordem social vigente, confirmada pelas teorias platónicas e aristotélicas, as festas honradas a Dionísio tratavam de colocarem de “cabeça para baixo” aquela sociedade escalonada.
Transportando a análise referente a essa “inversão das regras” a partir de um olhar antropológico contemporâneo, Roberto DaMatta dedica um texto ensaístico em seu livro “O que faz o brasil, Brasil?” capaz de se aproximar das reminiscências gregas.
O antropólogo de Niterói, Rio de Janeiro, deixa bem nítido o conceito de carnaval como a época de uma “ausência fantasiosa e utópica de miséria, trabalho, obrigações, pecado e deveres” (Rocco, Rio de Janeiro, 1998), em que a “lógica social que diz ‘cada macaco no seu galho’ e também ‘um lugar pra cada coisa, cada coisa em seu lugar’” é transformada por “um cenário e uma atmosfera social onde tudo isso pode ser trocado de lugar, invertido e subvertido pelas leis que comandam o reinado de Momo”, associando estas argumentações a tradicional e hierárquica sociedade brasileira.
Não obstante o motivo natural das festividades momescas e das antigas adorações ébrias dionisíacas possua a relevância e os seus adeptos, talvez venha ocorrendo “desvios” do teor carnavalesco. Mesmo que mestiços, negros e brancos pobres – opa! Esse é o retrato do Brasil hoje? Não é anacronismo – se tornem “iguais” aos de mesma etnia detentores de importantes bens materiais durante os cinco dias – ou três, ou quatro –, o arremedo da hierarquia sócio-econômica tem se avolumado lentamente, mas voraz, com os camarotes e com os cordões segregadores dos que pagam pelos abadás de quem não os compra, os quais estes demonstram ser os “ritos” característicos da... separação entre menos afortunados e os bem aquinhoados, por exemplo, no carnaval soteropolitano.
Sem dúvida, o carnaval realça figuras pouco notórias provindas, muitas vezes, de baixas camadas sócio-econômicas, porém a essência relacionada a “inversão das regras” está sendo deturpada (?) pela sobrevalorização “irracional” do capital como regra primordial para ter do bom e do melhor no período do reinado de Momo. É a “preservação” exorcizando a “inversão” no país preocupado por “miguiguaçus” (do tupi-guarani, significa “nádegas grandes”) e ilusões.
Texto: Jorge Amorim (amorimdoporto@hotmail.com)
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